Cessão de terras?: Dar voz às populações rurais?

Spore | Agosto 2009

Cerca de 20 milhões de hectares de terra foram cedidos a investidores nos últimos meses, principalmente em África. Face à amplitude do fenómeno, é invocada por muitos a necessidade de criar mecanismos de salvaguarda de modo a proteger os interesses das populações locais.

Será que algum dia veremos homens de negócios africanos comprar milhares de hectares de terras cerealíferas férteis no Middle West americano ou na França, na região da Beauce, para satisfazer as necessidades crescentes em milho e em trigo do seu continente? A ideia faz-nos sorrir. No entanto, tal não está tão longe da realidade, na medida em que cada vez há mais países e empresas privadas que compram ou arrendam terras de cultivo nos quatro cantos do mundo, a fim de satisfazerem as suas necessidades estratégicas e de garantirem os seus aprovisionamentos. Estamos perante um fenómeno de grande amplitude. Segundo os analistas do Instituto Internacional de Pesquisa em Políticas Alimentares (IFPRI) envolve entre 15 e 20 milhões de hectares, ou seja, quase o equivalente à superfície total cultivada na Alemanha, estimando-se os investimentos efectuados entre 15 e 21 mil milhões de euros.

Este fenómeno ganhou forma com as crises alimentar e financeira de 2007 e 2008. Estas crises fizeram com que alguns países, totalmente ou em grande parte dependentes das importações para a sua alimentação, ficassem conscientes dos riscos ligados a um mercado mundial, cada vez mais flutuante e incerto, sujeito a escassez.

Por conseguinte, estes países procuram garantir os seus aprovisionamentos adquirindo terras no estrangeiro, de forma a alimentarem as suas populações. Entre os maiores compradores figuram aqueles cujas condições geoclimáticas impedem o seu desenvolvimento agrícola. É o caso da Arábia Saudita, dos Emirados Árabes Unidos e do Qatar. Aquando da subida em flecha dos preços dos produtos alimentares em 2007, estes três países assistiram, com apreensão, a uma escalada da ira em muitos dos trabalhadores estrangeiros, devido ao aumento brutal do preço do arroz. Outros países, como sejam a China, a Coreia do Sul e a Índia, não possuem terra disponível suficiente e as suas necessidades crescentes levam-nos a "deslocalizar" a sua produção agrícola.

Esta corrida às terras aráveis também tem a sua origem na crise financeira de 2008. A nova procura, criada nomeadamente pelos Agrocombustiveis, e as limitações impostas à desflorestação e à urbanização, fizeram da terra um bem muito mais raro e cobiçado. Os investidores, confrontados com os maus desempenhos dos investimentos tradicionais - mercados de acções, matérias-primas... - aperceberam-se de que as terras agrícolas constituíam um investimento seguro e rentável. Depois de 2008, assiste-se, assim, à multiplicação dos fundos de investimento especializados na aquisição de terras. Em 2008, o fundo Emergent Asset Management (EAM), especializado em mercados emergentes criou, com a firma sulafricana de produtos agrícolas Grainvest, o African Land Fund (ALF) para adquirir terras na África austral.

Em grande escala

A discrição que envolve estas transacções fundiárias torna bastante difícil saber quem adquiriu o quê e onde. Mas os relatórios publicados recentemente sobre o assunto permitem fazer uma ideia da amplitude do fenómeno, que afecta sobretudo África (Etiópia, Gana, Madagáscar, Mali, Uganda, Sudão...) mas também a Ásia e, desde há pouco, a Europa do Leste (Ucrânia).

Principais aquisições de terras em África

[caption id="attachment_7822" align="aligncenter" width="430" caption="Fonte: Relatório IIED, Junho de 2009"]Fonte: Relatório IIED, Junho de 2009[/caption]

Muito recentemente, a RD do Congo teria cedido 2,8 milhões de hectares à China que aí irá realizar a maior exploração mundial de óleo de palma, depois de haver cedido 10 milhões à África do Sul. Madagáscar evidenciou-se em finais de 2008 com "o caso Daewoo": a firma sul-coreana pretendia arrendar 1,3 milhões de hectares, ou seja, a metade das terras aráveis da ilha, a fim de aí produzir milho e óleo de palma para o mercado coreano. Este negócio suscitou uma grande comoção, mesmo além fronteiras, e acentuou a impopularidade do antigo presidente. Uma das primeiras medidas do seu sucessor foi denunciar este contrato. No Mali, o Malibya, um fundo de investimento líbio, arrendou 100.000 ha na zona do Office du Niger para aí cultivar arroz. A Líbia já tinha obtido anteriormente 15.000 ha da Libéria, igualmente destinados à orizicultura.

O que os Governos esperam é que estas cessões passem a arrendamentos a prazo muito longo (99 anos). Estas transacções dão lugar (embora nem sempre seja o caso) ao pagamento de rendas anuais ou ao desembolso de uma soma, de uma só vez, nos momento do acordo. Os investidores, por vezes, empenham-se em que a região beneficie de infra-estruturas (estradas, sistemas de regadio, centros de saúde e escolas) e na transferência de tecnologias agrícolas. Para finalizar, a introdução de grandes explorações modernas pode constituir uma fonte de empregos locais e actuar como motor de desenvolvimento de sectores da produção.

Contudo, as negociações destes acordos provocam desconfiança e suscitam interrogações. A aquisição de terras por estrangeiros pode entrar em choque com a mentalidade e as tradições locais. Receia-se que se criem grandes domínios fundiários, como na América Latina ou Central, explorados por empresas multinacionais, para as quais os pequenos camponeses, despojados das suas terras, trabalhem como assalariados agrícolas.

Por outro lado, a maioria dos estudos ressalta que a assinatura destes contratos está envolta numa certa opacidade: os camponeses e as populações envolvidas, não são nem consultados, nem associados às transacções. As organizações camponesas são desfavoráveis ao princípio destas cessões. "Liquidam as terras africanas. Constrangem milhares de pequenos produtores à miséria. Isto é intolerável. A terra deve continuar a ser um património da comunidade em África", afirma o presidente do comité executivo da Rede das Organizações Camponesas e Produtores Agrícolas da África Ocidental (ROPPA), Ndiogou Fall, que apela a uma concertação entre os Estados, os produtores e os investidores estrangeiros. "Temos necessidade é de melhorar em termos de produção alimentar. Poderemos chegar lá se facultarem os meios aos agricultores locais, dando-lhes as melhores terras cultiváveis", acrescenta Victor Mhone, da Civil Society Agriculture Network (CISANET), uma ONG do Malaui.

Negociações tripartidas

O Instituto Internacional para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (IIED), que conduziu uma investigação em oito países africanos em colaboração com a FAO e o FIDA, recomenda, num relatório publicado em Junho de 2009, associar as populações locais às negociações e tomar melhor em conta os seus interesses. Trata-se, portanto, de transformar as negociações bilaterais entre o Estado vendedor e o comprador potencial em negociações tripartidas que envolvam os representantes agrícolas da região. Isto evitaria ceder terras recenseadas como não cultivadas, enquanto as comunidades camponesas nelas praticam actividades agrícolas, mesmo que sejam extensivas, recolhem plantas selvagens, nomeadamente medicinais e lenha, ou aí praticam a caça. As populações rurais deveriam, também, poder expressar-se sobre a questão da disponibilidade de recursos, a começar pela água: alguns dos grandes projectos estrangeiros prevêem projectos que consomem muita água, correndo-se assim o risco de se reduzir as disponibilidades de água para os camponeses. Esta questão coloca-se no Mali a propósito de projectos hidroagrícolas líbios na zona do Office du Niger.

A presença de agricultores durante as negociações pode, pois, revelar-se eficaz caso eles se encontrem à altura de, efectivamente, defenderem os seus interesses face a compradores poderosos. Para isso, devem estar muito bem estruturados, ser representativos e formados para estas negociações.

Tal reveste-se da maior importância na medida em que o relatório do IIED ressalta a falta de transparência e a imprecisão dos contratos, nomeadamente no que respeita às intenções dos compradores em matéria de investimentos, de desenvolvimento sectorial, de emprego e de destino final da produção (mercado local ou exportação). Até mesmo o Banco Mundial, norteado pelo princípio de investimento privado como meio de aumentar a produção alimentar, apela para o estabelecimento dum código de conduta. Este, segundo Marilou Uy, directora do departamento do desenvolvimento do sector privado para a região de África, "fixaria normas precisas no que se refere a um determinado número de pontos respeitantes à política fundiária, ao desenvolvimento social, à governação e à transparência." Mas, para ser aceite por todos, é bem evidente que um tal código de conduta pressupõe debates prévios, contraditórios e escolhas consensuais sobre a segurança e a soberania alimentares, aspectos de política agrícola para os quais as organizações camponesas são muito sensíveis.
  •   Spore
  • 31 August 2009
  • Sign the petition to stop Industria Chiquibul's violence against communities in Guatemala!
  • Who's involved?

    Whos Involved?


  • 13 May 2024 - Washington DC
    World Bank Land Conference 2024
  • Languages



    Special content



    Archives


    Latest posts