CARTA DO SEMINÁRIO “POLÍTICA FUNDIÁRIA E LUTAS POR TERRA E TERRITÓRIO”
Os movimentos sociais e organizações que assinam esta carta, com atuação em todo o país, reuniram-se em Brasília (DF), entre os dias 22 e 24 de julho de 2024, no Seminário "Política Fundiária e Lutas por Terra e Território". Nos mobilizamos pela necessidade de fortalecer e articular lutas em torno do direito fundamental de acesso à terra e ao território. As denúncias que temos feito sobre a relação entre grilagem de terras, o desmatamento e seus impactos sobre o ciclo das águas têm sido confirmadas pelo cenário de mudanças climáticas que vivenciamos atualmente.
O impasse histórico e permanente que mantém intocada a injusta concentração de terras no Brasil segue deixando um rastro de desigualdades, intensificando a fome, a violência, o racismo e a devastação ambiental em todo o país. A gradual perda da soberania alimentar e da biodiversidade, a contaminação das águas por agrotóxicos e o desmatamento em larga escala resultam diretamente de políticas fundiárias, agrárias e agrícolas que estimulam uma agropecuária predatória. Esse modelo tem sido viabilizado com recursos públicos, especialmente por meio do Plano Safra para o agronegócio e da grilagem de terras públicas e tradicionalmente ocupadas. Embora os povos indígenas, povos quilombolas, comunidades tradicionais e camponesas sejam os mais diretamente atingidos por esta realidade perversa, a ausência de políticas eficazes para democratização do acesso à terra afeta negativamente toda a sociedade brasileira.
As diferentes perspectivas surgidas neste encontro, longe de nos afastar da luta em comum, expressaram a própria diversidade do campo brasileiro, constituindo um estímulo a mais para chegarmos em alguns consensos sobre quais caminhos devemos seguir na conjuntura atual. Compreendemos que a proteção ao meio ambiente e o enfrentamento à crise climática que se agrava neste século XXI não serão eficazes sem uma reforma agrária que promova efetivamente a democratização da terra e o reconhecimento e garantia dos territórios tradicionais. Os modos de fazer, viver e criar dos povos do campo estão profundamente interligados com a terra, as águas, florestas e os demais seres vivos e representam uma esperança da garantia de manutenção dos biomas em equilíbrio.
A instituição do mercado de carbono e o avanço da produção de energias tidas como renováveis, com apoio de sucessivos governos, em vez de apontar no sentido de superação deste cenário catastrófico, tem incentivado a especulação fundiária por corporações nacionais e transnacionais que resulta em mais violência no campo e inviabilização dos modos de vida. Em meio à profusão de falsas soluções para a crise ambiental e climática, propomos alternativas fundamentadas nas experiências populares do campo brasileiro, a exemplo da agroecologia e do extrativismo não predatório.
A titulação individual de lotes de assentamentos, priorizada pelo INCRA desde o governo Bolsonaro, não enfrenta os problemas de estrutura e o empobrecimento das famílias assentadas. Esta é uma política que precisa ser revista urgentemente pelo atual governo. A reforma agrária de mercado não é uma resposta eficaz para o enfrentamento da concentração fundiária. Neste sentido, é necessário superar os entraves burocráticos e reforçar a política de Reforma Agrária orientando-a não apenas para o assentamento de famílias, mas para o reconhecimento dos territórios tradicionais e estímulo à agroecológica, respeitando as particularidades de cada região.
Compreendemos que o reconhecimento, demarcação e titulação de terras indígenas e quilombolas devem ser retomados em um ritmo mais acelerado. As medidas tomadas pelo atual governo são insuficientes tanto em termos orçamentários quanto da necessária estruturação dos órgãos responsáveis por estas políticas públicas, especialmente INCRA e FUNAI. Estas políticas também têm sido prejudicadas pelo excesso de burocracia. No ritmo atual, de acordo com a CONAQ e Terra de Direitos, seriam necessários 2.708 anos para a demarcação de todos os territórios quilombolas reivindicados.
Denunciamos os ataques aos direitos territoriais dos povos originários, povos quilombolas, comunidades tradicionais e camponesas, especificamente no Congresso Nacional, nas assembleias legislativas estaduais e no poder judiciário, por exemplo: o estabelecimento de marco temporal para o reconhecimento de terra indígena, através da Lei Federal no 14.701/2023, da PEC 48/2023 e da Ação Declaratória de Constitucionalidade no 87/2023, que tramita no STF; a PEC 03/2022, que visa a privatização dos terrenos de marinha e ameaçando os territórios pesqueiros; o PL no 510/2021, que legitima a grilagem, e o PL 709/2023, em trâmite no Congresso Nacional, que criminaliza a luta pela terra. Neste sentido, compreendemos que é urgente a construção participativa de um marco normativo para uma política nacional de demarcação e titulação de territórios tradicionais.
O programa Terra Brasil e a prateleira de terras, embora sejam iniciativas que avançam em alguns destes pontos, ainda são insuficientes para o enfrentamento destas questões. Outras formas de proteção aos territórios precisam ser garantidas. A consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas, quilombolas e tradicionais, como prevê a Convenção 169 da OIT, deve ser realizada com respeito às particularidades e as visões sobre o conceito de desenvolvimento de cada povo diretamente afetado.
Os dados acerca da quantificação e localização destas terras, tanto estaduais quanto federais, ainda são frágeis e subestimados, especialmente se consideramos que não estão sendo contabilizadas as terras ilegalmente registradas em cartório como pretensa propriedade privada. Os diferentes órgãos de governo responsáveis pela execução da política fundiária precisam se debruçar sobre formas mais eficazes para identificação e mapeamento das terras públicas, garantindo a transparência e o acesso aos dados fundiários. Diante das fragilidades apontadas, a grilagem de terras segue como a principal forma de avanço do agronegócio, concentrando terras e devastando territórios tradicionais, a exemplo do que ocorre nas regiões Matopiba e Amacro. O enfrentamento à grilagem deve ser uma ação conjunta dos órgãos do poder executivo, legislativo e do sistema de justiça, em todas as suas esferas. A destinação constitucional das terras públicas é expressa em nossa Constituição Federal: elas devem ser direcionadas para a Reforma Agrária, demarcação e titulação de territórios tradicionalmente ocupados e para a garantia do meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Compreendemos que é necessário o enfrentamento articulado à violência no campo para que as políticas públicas de garantia de direitos territoriais tenham o efeito desejado. A atuação de milícias rurais e organizações criminosas como o movimento ruralista “Invasão Zero” não podem ser tolerados pelo estado brasileiro; pelo contrário, devem ser combatidas e desarticuladas para que alcancemos uma verdadeira paz no campo.
Por fim, reivindicamos uma participação efetiva e democrática em todas as iniciativas governamentais relacionadas aos temas mencionados nesta carta, possibilitando a contribuição dos diferentes segmentos representados para a construção de normas e políticas públicas mais eficazes para a garantia dos direitos territoriais e socioambientais.
Brasília (DF), 24 de julho de 2024